Uma estranha noite em Nice, ou Cannes,
ou Cap Antibes,
enfim, não importa...
Ayalla de Aguiar
Jamais
vira um orangotango em minha vida. Nem em circo. Nem em zoológico. Não saberia
como me comportar diante de um. Era tarde da noite, foi tudo meio que de repente. Eu estava sentada num
banco, na pérgola da Promenade des Anglais (ou era na Croisette?) Não importa.
Olhava o Mediterrâneo com o respeito religioso com que sempre olho para este
mar interior, repositório e túmulo da caminhada da humanidade. Tudo o que se
passou às suas margens, sobre suas águas, tudo o que jaz, ou jazeu, sob elas,
nos diz respeito. Explica-nos. Como
somos, como nos desenvolvemos. Explica nosso caráter. A história, o mito, a
lenda, as conquistas, as derrotas, os êxitos, os fracassos. O caráter do homem
ocidental se gestou aqui, nas águas deste mar fechado em meio às terras. O
Grande Azul.
Um
dia, há muito tempo, eu jurara, sobre suas águas, e tendo-as por testemunho,
que jamais alguém me haveria de humilhar. Mas isto é outra história.
Alguém
sentou-se no banco, a meu lado, trazendo-me
de volta à superfície. Era um orangotango.
—“Chose étrange”— diria meu querido e
saudoso professor.
Estávamos
em Nice, ou Cannes, pouco importa, diante do Mediterrâneo. E o que se vê em
Nice, ou em Cannes, não se discute. Viu, está visto. Existe. Se Ionesco pôde
ver, por que não eu?
Era um orangotango,
sentado a meu lado. E ele me perguntou:
—
Madame, por favor, que horas são?
—
São 9:15 – respondi.
— Da
noite, quero crer?
—
Sim, da noite. Não notou? Já está escurecendo.
—
Nunca se sabe, madame. Nunca se sabe.
Falava
francês com um sotaque estranho. E o que me chamou a atenção é que não era
aquele sotaque típico africano: “c’est vrrai,
c’est vrrai”.
Esse
outro acento eu não conseguia distinguir. Fiquei curiosa. De onde teria saído o
diabo deste orangotango com tal sotaque?
Eu tinha duas alternativas: ou me calava, ignorava a presença do orangotango
e, discretamente, me afastava dali. Ou ficava. Fiquei. Para puxar o fio da
meada e ver aonde ia dar tudo aquilo. Podia render uma boa história. Estava um pouco insegura, não sabia por onde
começar a conversa . Falar do tempo era muito óbvio. Resolvi arriscar. Puxei o
fio da meada.
— O
senhor não é daqui? – pergunta afirmativa.
—
Claro que não, madame. A senhora há de convir que não se veem muitos como eu,
neste país, fazendo turismo.
— Ah!
O senhor viaja a turismo, não a negócios?
—
Sim, digamos que sim.
—
Bem, é que, atualmente, com o deslocamento das populações, vê-se de tudo. Quero
dizer, muitos estrangeiros, das mais variadas etnias...
–
Madame tem razão. Vê-se de tudo. Eu disse à minha mulher, antes de viajar: “Seu
marido vai chamar atenção”.
É
casado. Uma informação.
—
Minha mulher e meus filhos nunca saíram das Ilhas Mauricio, onde vivemos.
–
Interessante. O senhor é, pois, africano?
–
Não exatamente, madame. Somos indianos.
De origem. Meus antepassados se
radicaram nas ilhas desde tempos imemoriais. Bem mais recentemente, por volta
de 1500, fomos descobertos por navegadores portugueses, depois fomos colonizados
por franceses, holandeses, ingleses. Hoje somos um Estado independente.
Este
cara está me gozando. Quem foi descoberto em 1500, por portugueses, fomos nós.
Onde será que ele quer chegar com esta conversa mole?
— E
Madame, de onde vem? Do leste europeu?
Era
a minha vez de tirar sarro (ainda se tira sarro?) da cara do sujeito. Está me
achando com cara de romena? Albanesa? Conversa
chata, esta.
Respondi,
educadamente:
—
Não, cavalheiro, ao contrário. Eu venho do extremo
ocidente.
Frisei
a expressão.
—
Interessante. Perdoe-me se não estou a alcançar a localização. Geograficamente,
quero dizer.
— O extremo ocidente, acentuei – é do outro lado do Atlântico, senhor.
—
Interessante, muito interessante, repetia. É uma região de florestas, de
grandes florestas. Meus antepassados eram seres de floresta... Interessante.
Madame, tão civilizada, tão bem informada, parece um pouco surpresa por estar
conversando com um estranho, e a estas horas.
—
Pois não é? Meio tarde. Mas, como dizem na minha terra, se a prosa está boa a
gente segue proseando.
Orango
avaliava a minha condição de ser civilizado como se no extremo ocidente só houvesse, digamos, primatas. Eu já estava farta
de, ao longo de minha vida, me desculpar, de explicar que no extremo ocidente usávamos roupas, comíamos com talheres, íamos
a universidades e conseguíamos falar mais de um idioma, além do nosso patuá
nativo.
Enfim, não importa. Conversamos sobre muitas outras
coisas, a chamada conversa fiada, solta, sem comprometimento. O fio da meada,
que eu pretendera puxar, não desenrolou muito além da superfície do novelo. E a
mim já não me interessava saber-lhe vida, paixão e morte. As horas iam passando,
frente ao Mediterrâneo. Agradáveis, horas plenas, e isso me bastava.
Quando
Orango, discretamente, olhou seu relógio de pulso, um magnífico Rolex, na
extremidade de seu longo braço, pensei comigo: Se ele tem relógio, por que
perguntou-me as horas?
Simulou, ou, realmente, sentiu um leve susto.
– Macacos
me mordam! São quase quatro da manhã. Como
o tempo passou rápido. Hélas! Demasiado
rápido, madame. Se eu não correr perco
meu voo para Stockholm. Désolé!
Preciso voar para o aeroporto. Perdoe-me a pressa. Foi uma honra desfrutar de
sua amável companhia nesta noite magnífica, mágica. Pelo menos para mim. Espero
revê-la um dia, madame. Adeus!
Disse
isso num francês fluente e impecável, sem sotaque, já em pé, acenando para um
táxi.
Olhei
as horas no meu relógio de camelô: três e cinquenta e cinco. Na linha do horizonte, à minha esquerda, uma
fímbria de claridade começava a se delinear. Algumas horas antes, poucas, eu
vira o ocaso sobre o Mediterrâneo. Agora via o alvorecer. Imutável e perpétua
marcha do tempo sobre o Grande Azul.
Levantei,
dei uns passos para destravar as articulações, me espreguicei. O que se vê em
Nice, ou em Cannes, não se discute. É real. Viu, está visto. Existe.
Enfim, não importa.